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Caderno B

VAGAR SEM DESTINO

Baudelaire chega aos 200 anos na hora em que flanar pode levar à morte por Covid

Por FRANCESCA ANGIOLILLO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 15/04/2021

Matéria atualizada em 15/04/2021 às 04h00

| Reprodução

“Paris é outra (a forma das cidades muda/ Mais rápido, bem mais, que um coração mortal.” Mas será mesmo que os versos de Charles Baudelaire ainda estão certos? Muda mais rápido nosso coração ou o nosso entorno?

Nos 200 anos do poeta francês, que se completam nesta sexta, sua mais difundida criação talvez esteja prestes a se modificar de maneira irrevogável.

Não se trata de nenhuma nova descoberta relativa ao monumental “As Flores do Mal” -de cuja mais recente tradução, por Júlio Castañon Guimarães, para a Companhia das Letras, veio a tradução dos versos acima, retirados de “O Cisne”.

O que as circunstâncias vêm modificando, no silêncio de nossas casas e home offices, é o hábito de flanar. Resistirá ao confinamento o vagar sem destino pelas ruas? E ao controle do tempo imposto pelos aplicativos?

É certo que a “flânerie” já existia e era reconhecida pela literatura desde antes -Balzac, duas décadas mais velho que Baudelaire, a chamou de “gastronomia do olho”. Mas é a partir da modernidade baudelairiana que o costume se cristaliza como um topos da criação artística.

A Paris que Baudelaire identifica como outra é a do Segundo Império, remodelada pelas obras do barão de Haussmann, prefeito do departamento do Sena entre 1853 e 1870, e que o poeta viu nascer. Então se rasgou entre seu velho casario medieval a trama de bulevares que se tornou o símbolo da cidade moderna.

Ela já se modificou e, no pós-pandemia, deve mudar novamente, inclusive para que as pessoas ganhem mais espaço para caminhar. Como se exportaram os traçados haussmanianos para o Rio de Janeiro ou Buenos Aires, no começo do século 20, a caminhada sem propósito também se exportou.

Esse se deixar levar pela e na observação da cidade é costume que conforma boa parte da escrita de Baudelaire e cujo valor ele ressalta em outro de seus textos mais célebres, “O Pintor da Vida Moderna”.

O ensaio de 1859 parte de Constantin Guys, pintor que de outro modo talvez fosse pouco lembrado pela história, para fazer o elogio da busca pelo novo como valor essencial da modernidade. O novo, Guys ia buscar nas ruas, retornando, embebido do que vira, ao ateliê. O artista, escreve Baudelaire, pode ser comparado “a um espelho tão imenso quanto essa multidão, a um

caleidoscópio dotado de consciência”; ele o define como “um eu insaciável pelo não eu”.

Mas, no coração mortal de escritores, caminhar pelas ruas e nelas ir colher a matéria-prima de criação, o “não eu”, é ainda um método. Ou era. Pois como perambular perdido na multidão na era da Covid-19? Preso em seu apartamento em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, o poeta Tarso de Melo diz que é difícil tentar imaginar o que vai acontecer com as ruas quando, enfim, puderem ser retomadas.

Pensando a partir de sua atividade profissional como advogado especializado em relações de trabalho, arrisca dizer que o tempo irá modificar o espaço. Ou melhor, o controle do tempo, por aplicativos de gestão do tempo no home office e nos deliveries. Nesse quadro, diz, “chega a ser absurdo falar em flâneur”.

“A rua era o lugar da aleatoriedade. Furou meu pneu, o ônibus quebrou. Toda essa aleatoriedade do dia, ela é saudável. No final das contas, a gente foi sendo levado por uma ideia de que perdeu tempo.”

Quanto mais tecnologia há na cidade, mais controle do ritmo, ele frisa. “A calçada é uma tecnologia, ela administra os fluxos, do carro, da carroça inicialmente, para que todo mundo possa ir mais rápido. O flâneur, de certo modo, não aceita o ritmo da cidade.”

Andar seria, assim, “um ato politicamente libertário”. Mas flanar, hoje, é proibido. Julgamos quem sai à toa. Passear com o cachorro ainda pode. “É o cachorro que te autoriza.”


Foto: Reprodução
 

Mas, adverte, “mesmo quem vai para a rua todo dia com o cachorro cria outro automático”. Na verdade, diz, o que as pessoas querem é “ter tudo sob controle, sair e voltar no mesmo horário”.

“Você sai com um relógio, com um aparelho ligado que diz quanto você respirou, qual foi a sua passada. Não faz sentido o flâneur do Waze. Sai, mas leva isso que a gente chama de casa hoje, esses aparelhinhos.”

Com a frase, Tarso de Melo faz uma inversão curiosa do principal leitor de Charles Baudelaire, o pensador alemão Walter Benjamin, cujos estudos sobre o poeta francês se tornaram incontornáveis e contribuíram para sua associação com o livre perambular. Benjamin diz que a casa é a rua do flâneur.

Mas há outras formas de levar a casa para a rua que impedem o descompromisso da flânerie.

“Mesmo quando a mulher acessa o espaço público, esse movimento muitas vezes se resume a uma espécie de expansão da função do espaço privado, como na frequência maior em mercados, farmácias, escolas, postos de saúde, ressignificando os espaços públicos como espaços de adequação à manuten-ção do lar.”

Esse trecho vem de “Desterro”, terceiro livro de Camila Assad. Poeta e tradutora literária, ela faz na obra uma leitura da experiência da mulher no espaço público, transferindo para a poesia as pesquisas que começou a desenvolver como estudante de arquitetura em Presidente Prudente, no interior de São Paulo.

Radicada na capital paulista, Assad diz que não sai quase nunca desde o começo da pandemia e percebeu “logo após os primeiros 40 dias” quanto sua criação estava “atrelada à vivência na cidade”.

Mas, mesmo quando podia ter essa vivência, não era sem conflitos. Além de a mulher sair levando consigo os afazeres domésticos -o avesso da falta de propósito-, ela está na rua sob o signo da ameaça.

Quando sai para caminhar, Assad prende os cabelos e usa roupas largas. A história da mulher no espaço público é uma história de insegurança.

Em “Desterro”, ela revisitou suas leituras de Baudelaire e de Benjamin. E diz que, ao escrever, pensava muito no comentário de Benjamin sobre o ritmo do flâneur ser como “deambular com uma tartaruga”. “Para mim, as mulheres caminhariam com coelhos”, ela diz.

Um dos aspectos inovadores de Baudelaire ao publicar “As Flores do Mal” foi levar para a literatura assuntos que não cabiam nela. Como lembra Tarso de Melo, Baudelaire tira a escrita do mundo controlado dos salões e a carrega para a balbúrdia.

Boa parte de seu impacto duradouro vem do fato de ele incorporar um vocabulário que não se usava por escrito e uma galeria de tipos urbanos que passam a ser dignos da poesia.

Mas, “reflexo da época”, diz Camila Assad, as mulheres que nela aparecem “são as prostitutas, a viúva, a velha, a lésbica e sobretudo a passante, a mulher enquanto musa”. A mulher era para o poeta “objeto de análise e observação, assim como ele fazia com a própria cidade, mais próxima da descrição da metrópole do que um ser atuante”.

O espaço da mulher na cidade tem se tornado atenção de livros recentes, como da geógrafa canadense Leslie Kern, “Feminist City”, ou em “Flâneuse”, da escritora americana Lauren Elkin, ambos ainda sem tradução no Brasil.

Elas seguem uma linhagem que se popularizou fora dos bancos acadêmicos com a ensaísta Rebecca Solnit, que dedicou um capítulo de seu “Wanderlust” -publicado em português apenas com seu subtítulo, “Uma História do Caminhar”- e retoma o tema em suas memórias, recém-lançadas pela Companhia das Letras, “Recordações da Minha Inexistência”.

A experiência do deslocamento é tematizada na obra da poeta Marília Garcia de outras formas. Aparece, por exemplo em “Um Teste de Resistores”, livro de 2014 que aborda a construção de sua relação com São Paulo, para onde se mudara pouco antes e onde ainda vive.

Ela diz ter “escrito pouquíssimo na pandemia”. Dos poucos textos, talvez três, recorda, produzidos em 2020, um havia sido iniciado no ano anterior. Seguindo as árvores de sua rua que, notou, “tinham as raízes para fora”, resolveu escrever um “mapa das árvores, até chegar numa na rua Tutoia que é em frente à delegacia que foi o DOI-Codi”.

Mas, ao tentar reescrever o texto para apresentar “num Zoom”, constatou que sua espacialidade não cabia no momento. “Era um texto do século passado! Hoje os espaços são outros.”

Há diferentes maneiras, porém, de entender o caminhar na literatura, o que pode ser uma chave metafórica para entender novas extensões da “flânerie”. “Os deslocamentos no que escrevo”, diz Garcia, “podem estar muito relacionados com a ideia do deslocamento da palavra no discurso”. O percurso da escrita, defende, também pode levar o autor sem que ele saiba onde vai dar.

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