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DIGA NÃO AOS SORRISOS FORÇADOS

Especialista comenta o conceito de “positividade tóxica” e reforça que não é possível experimentar um único sentimento o tempo todo

Por DA EDITORIA DA REVISTA MARÉ | Edição do dia 27/03/2021

Matéria atualizada em 27/03/2021 às 04h00

Diante de uma situação ou até mesmo de um dia difícil, você pode já ter tentado, ou ter visto um amigo ou colega de trabalho tentar ver o ‘lado bom das coisas’, ignorando totalmente a existência daquele incômodo ou problema. Você também deve conhecer alguém - ou até ser essa pessoa - que não externa nada a não ser uma vibe falsificada de ‘paz e amor’. De acordo com o psicoterapeuta junguiano Dr. Leonardo Torres (foto), essa busca alucinada por experimentar somente felicidade e gratidão, a chamada “positividade tóxica”, pode ser prejudicial.

O especialista diz que o uso desse conceito nas redes sociais e a observação da aplicação do conceito na realidade não o surpreende, mas preocupa. Os últimos anos, opina, foram marcados por uma exagerada ostentação de felicidade, riqueza e status nas redes sociais digitais por parte da sociedade e ainda legitimada por indivíduos que se intitulavam como coaches motivacionais e similares.

A sociedade tem vivido uma grande ilusão nas redes sociais digitais: postam fotografias photoshopadas; sacrificam-se em dietas infindáveis; fazem o que chamam de harmonização facial, cirurgias plásticas e outros nomes da moda; ostentam com seus carros, celulares e joias; ostentam lugares, viagens, hotéis, voos. Tudo isso somente para passar a imagem de uma vida perfeita, longe das infelicidades e das dificuldades.

Leonardo Torres diz que estamos chamando de “Positividade Tóxica” o que parte dos psicoterapeutas junguianos já conhecem muito bem: a unilateralidade da vida. Tóxico sempre é algo que está em excesso ou falta. Felicidade em excesso é tóxica, assim como a tristeza em excesso.

“É uma ilusão do indivíduo querer que exista somente uma única emoção e/ou sentimento em sua vida. O ser humano concebe o mundo e passa pelo mundo de acordo com os contrastes, ou seja, assim como é impossível conhecer o salgado sem o doce, a luz sem a sombra, o mal sem o bem, é impossível ser feliz sem passar por momentos de tristeza, infelicidade e depressão”, diz o psicoterapeuta.

NA VIDA REAL

Aos 29 anos, o publicitário que preferiu ser identificado apenas como Arthur, fala sobre a convivência com colegas que, segundo ele, vivem na “fantasia zen” - que é como Arthur e os amigos chamam o estado de negação dos companheiros de trabalho.

“Acho que tem muitas diferenças entre a pessoa ser zen, a pessoa ser realmente positiva, e a pessoa forçar esse comportamento”, opina.

“Tenho duas situações distintas. A primeira eu acho que minha colega faz por auto cobrança. Ela se cobra para ser feliz porque se baseia na vida dos outros, acha que todo mundo espera alguém good vibes chegando no escritório, quando seria preferível que viesse alguém real. A gente já teve essa conversa, mas dava pra ver o quanto ela se incomodava com alguém apontando isso, parecia que ia explodir com um sorriso no rosto”, conta o publicitário.

“O outro caso é de um colega que já não convive conosco. Ele representa um outro lado dessa história de positividade tóxica, porque muita gente realmente esperava que ele fosse aquele docinho. Mas a verdade é que ele é um doce amargo demais, ele disfarçava as insatisfações com aquele temperamento passivo e de princesa da Disney enquanto maquinava contra os outros. Acho que é um aprendizado, pessoas só doces não são reais, desconfie”, diz.

Leonardo Torres diz que não é incomum observar esses comportamentos em ambientes de trabalho, o que pode ter a ver com o fato de a positividade tóxica estar ligada à competitividade e ao que conceituamos como sucesso. Quando alguém não se vê naquela casta de pessoas que considera vencedoras, ela anula seus sentimentos, nega a realidade e reforça um comportamento de repressão.

“Quem possui a expectativa de ser apenas feliz somente frustra-se rapidamente quando outras emoções e/ou sentimentos eclodem, fazendo com que estes dominem com maior facilidade as atitudes e os comportamentos dos indivíduos”, diz o psicoterapeuta.

“Quando um cliente chega em minha clínica afirmando que tem depressão, eu pergunto: ‘você pode mandar a sua depressão embora? Se não pode, é porque ela que possui você’. Não é evitando emoções consideradas negativas que o indivíduo ganhará autonomia sobre elas; mas sim, ‘mergulhando’ nelas”, completa Leonardo.

“Se o indivíduo acredita piamente que há somente uma única emoção ou sentimento em sua vida, é porque ele está cego para as outras. E como o filósofo Heráclito aponta por meio da enantiodromia, quanto mais você caminha para a felicidade, ostentação e status, mais também é o movimento contrário. Não à toa, hoje, já é possível presenciar influencers com alguns transtornos psicológicos e uma sociedade neurótica tentando copiar as imagens destas celebridades”, finaliza o especialista.

Foto: UNSPLASH
 


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